segunda-feira, 19 de abril de 2021

Na sutil teia da dor

Uma teia é tecida lenta e cuidadosamente. Sem alarde. Sua resistência aumenta a cada fio agregado. Praticamente invisível, dificilmente poderá ser evitada pelas suas vítimas potenciais. É silenciosa, discreta e flexível. Não destrói nem devora. Não provoca feridas dilacerantes. Simplesmente prende, aprisiona.

Na sua transparência reside sua força. É muito difícil de ser notada. A percepção de sua existência, poderá ser o primeiro sinal de que já não há retorno, de que fomos capturados por ela.

Mas não é exclusivo de florestas ou telhados sombrios o ambiente propiciador das armadilhas caracterizadas pelas teias, tão sutis quanto poderosas. É na privacidade do lar, ambiente supostamente protegido e privativo da família, pretensamente iluminado e aquecido pela energia do amor que, com uma frequência muito maior que a imaginada, imensas, envolventes e poderosas teias emocionais são estendidas silenciosamente, com objetivo de capturar e sufocar sonhos, desejos e liberdades. São as teias do relacionamento abusivo.

Avaliamos como importante destacar algumas considerações que, em nosso entender, são essenciais para um melhor entendimento destes conceitos:

 1. Não há geração espontânea da teia.

As teias as quais nos referimos não têm geração espontânea nem surgem do acaso. São estendidas a partir de um primeiro fio ancorado num íntimo e perverso sentimento de dominação. Têm, na sua criação, objetivos e propósitos claramente definidos. Nascem pequenas, sutis, quase imperceptíveis. Se expandem lentamente, concêntricas, aumentando progressivamente sua capacidade de reter, imobilizar, asfixiar.

 2. Não possui exclusividade de gênero

Um relacionamento abusivo não possui características de dominância de gênero. Não é sinônimo de machismo ou feminismo. Embora exista uma predominância evidente de vítimas entre o sexo feminino, não devemos subestimar a situação oposta. Há sim, multiplicidade de situações nas quais, o homem é objeto de manipulação perversa pela sua companheira.

 3. Relacionamento abusivo é indiscutivelmente uma forma de violência doméstica

Embora não necessariamente um relacionamento abusivo termine em tapas ou agressões físicas de maior intensidade, caracteriza sim uma grave situação de violência na relação visto que seus efeitos, deixam marcas dolorosas e profundas nas pessoas, quebrando os sólidos alicerces nos quais deve ser fundado um convívio baseado no amor e no respeito mútuos.

Isto posto, devemos considerar que este tipo de relacionamento pode se estabelecer tanto entre pessoas inicialmente fortes, instruídas, resolvidas e de bem com a vida, quanto entre àquelas fragilizadas, menos afortunadas e carentes de suporte emocional e material adequado que lhes permita levar uma vida, pelo menos digna e socialmente aceitável. O relacionamento abusivo não escolhe classes sociais nem graus acadêmicos. É necessário acabar com falsas premissas e clichês qualitativos e estratificantes. Permeia todos os muros, níveis e categorias. Todos estamos sujeitos a ele.

O relacionamento abusivo não deve ser confundido com relacionamento conflitivo, àquele onde um casal vive “às turras”, brigando e discutindo por assuntos banais, ou procurando “pelos no ovo”, como é dito comumente. Não é este modelo de convívio que estamos focando.

O abuso geralmente se manifesta num ambiente que em nada se assemelha a uma batalha doméstica. Há um padrão comportamental identificado, onde agressões e violência física inexistem. O abusador, mostra-se gentil, carinhoso, romântico e por vezes altamente apaixonado. Atrai a presa para sua teia alimentando sua autoestima de forma intensa e envolvente. Percebe-se um discurso amoroso, com declarações inflamadas, onde afagos carinhosos e intensos elogios pessoais despertam emoções e sentimentos represados.

Neste ponto, devemos abrir um parêntese para esclarecer um aspecto chave que não podemos deixar de mencionar: O amor é lindo, e nunca é demais. Uma manifestação carinhosa, um reconhecimento, um elogio, quando espontâneo e natural, alimenta com sua energia a chama da felicidade. É a essência da vida a dois.

A luz de advertência deve ser acessa quando essas manifestações são exageradas, quando as provas de amor são cobradas de forma intensa e repetitivas. É necessário perceber e saber diferenciar uma declaração de amor espontânea daquela que tem, como objetivo mudar o foco, ocultar uma eventual constatação de desvio ou, principalmente alterar uma situação determinada para permitir uma alteração de percurso e assumir o controle.

 4. Amor e manipulação

Quando a relação está nas suas fases iniciais de descobertas, onde a paixão se sobrepõe, tanto em intensidade quanto em emoção, não é difícil identificar rompantes de amor e discursos inflamados. Não são estes momentos que estamos considerando. O nosso foco está centrado naquele relacionamento consolidado, estável ou pelo menos com certo grau de “normalidade relacional e social”. Não há romantismo “pulsante”, oscilatório, periódico. O amor é suave, permanente, continuado. É “no dia-a-dia” que se ama.

Quando a relação está pautada por episódios cíclicos de brigas, humilhações, ciúmes, críticas banais e desnecessárias, seguidas por momentos “especiais” de arrependimentos, romantismo, atitudes compensatórias e singularmente apaixonadas, devemos parar para pensar. Há, certamente uma luz de alerta se ascendendo.

Não se tapam buracos na relação com romantismo, flores ou declarações apaixonadas. Os desentendimentos não podem ser acobertados com presentes ou jantares à luz de velas. São as atitudes diárias que falam mais alto. Surpresas, presentes, caixas de bombons ou elogios ardentes não são demonstrações de amor. O amor se vive na pele, nas emoções, no compartilhamento de momentos bons e ruins. Se consolida na rotina do conviver em paz, não na excepcionalidade de um instante.

Promessas repetidas, regadas a desculpas e arrependimento, certamente não frutificarão, pois estão contaminadas com a intencionalidade. Não há sinceridade no pedido de perdão reiterado.

 5. Mudar para melhorar

Uma segunda faceta indicativa de um possível relacionamento abusivo pode ser identificada nas eventuais propostas realizadas, de forma indireta ou não, com intenção de promover mudanças comportamentais na outra parte.

Não nos referimos as propostas críticas realizadas de forma sincera e amorosa, com intenção construtiva, resultantes de diálogos abertos e bem intencionados. Uma relação baseada no amor e na sinceridade, permite a troca de opiniões francas assim como os diálogos críticos dentro dos limites naturais do respeito a individualidade e independência de escolha de cada um. Hábitos, gostos e costumes podem, e devem ser revistos, sempre de forma propositiva e na intenção de melhorar e aprimorar uma relação. Um casal aprende e evolui no diálogo e no amor, com tolerância e respeito pelas escolhas individuais. Isso não representa submissão. Ouvir a pessoa que nos ama ou aceitar sugestões dela, quando bem intencionadas, ajuda a estabelecer uma relação de intimidade e parceria.

Quando as mudanças sugeridas envolvem traços pessoais e particulares de comportamento, estrutura do pensamento ou estilo de vida, para serem adequados à identidade e preferências do outro, estaremos frente a uma invasão tóxica de nossa personalidade.

O abusador, de forma sutil, porém consistente, buscará mostrar que uma atitude correta, um modo certo de pensar ou agir está sempre assentado na sua própria forma de enxergar as coisas. Seu corte de cabelo, suas roupas, suas escolhas pessoais, suas amizades, seus perfumes, os livros que você lê, seus cursos e atividades acadêmicas, enfim, as características próprias de sua personalidade serão questionadas indiretamente. Não haverá uma crítica objetiva e contundente, mas comentários depreciativos e desaprovadores do tipo:

-   “Isso não está errado, claro. Porém ficaria melhor em você assim ou de tal forma...”

-    “Esse perfume é doce demais para você... prefiro tal outro...”

-   “Não entendo como você pode gostar disso..., eu prefiro assim.”

-   “Essa roupa fica melhor em pessoas magras... acho melhor para você, essa outra.”

-   “Esse curso é totalmente sem futuro... para você melhor seria...”

 Você pode pensar que nada custa uma pequena adequação no meu penteado, ouvir sua opinião, atender seus desejos, realizar pequenos ajustes de estilo para atender seus pedidos. Pequenos sacrifícios ajudam a manter uma boa relação, certo?

Errado. Nos termos acima expostos, o que realmente está acontecendo é uma verdadeira submissão da individualidade, um cancelamento da identidade. A liberdade de pensar, de gostar, de ser, desejar e sonhar, é bloqueada. As emoções são anuladas, o prazer é substituído pela insegurança e o medo. Não há amor nessa relação. Ele morreu na sutil teia da dor.

Você pode concordar ou não, porém essa é minha opinião, aqui, somente entre nós.