segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A hipocrisia no discurso

Antes de falarmos sobre a hipocrisia no discurso, me permito relatar um acontecimento histórico que certamente marcou um verdadeiro ponto de inflexão no desenvolvimento da humanidade, a qual teve, na sua evolução, momentos nos quais paradigmas solidamente enraizados foram substituídos por outros radicalmente diferentes.

A teoria Geocêntrica, postulada pelo astrônomo grego Claudio Ptolomeu (100 – 168) no início da Era Cristã, foi conceitualmente defendida em seu livro intitulado “Almagesto”. Ptolomeu, como resultado da observação do movimento dos astros no céu, concluiu que a Terra está posicionada no centro do Sistema Solar, e consequentemente os demais astros orbitariam ao redor dela, fixados sobre esferas concêntricas que girariam com diferentes velocidades. O Geocentrismo foi intensamente defendido pela Igreja Católica, pois apresentava diversos aspectos de passagens bíblicas, sendo chamados de hereges, e muitas vezes queimados em fogueiras, aqueles que dela discordavam.

Quatorze séculos se passaram (1.400 anos!), até que essa teoria Geocêntrica fosse contestada pelo matemático e astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473 – 1543), que propôs uma outra estrutura do Sistema Solar, o Heliocentrismo. Nesta nova, e revolucionária concepção, Copérnico postula que a Terra e os demais planetas se movem ao redor do Sol, sendo este, o verdadeiro centro do Sistema Solar. A sucessão de dias e noites é uma consequência do movimento de rotação da Terra sobre seu próprio eixo. Este modelo (denominado de sistema copernicano), não foi aceito pela Igreja Católica, que adotava a teoria do Geocentrismo, elaborada por Ptolomeu. A Igreja Católica incluiu o livro “Das Revoluções dos Corpos Celestes”, onde Copérnico descrevia sua teoria, no Índex – a lista dos livros proibidos por heresia. O dogmatismo da igreja era tão forte, que questionar a perfeição divina era realmente uma atitude extremamente perigosa, para integridade pessoal.

O astrônomo Galileo Galilei (1564-1642), através de suas observações, foi o primeiro cientista a comprovar, de forma objetiva, que o sistema heliocêntrico de Copérnico estava solidamente fundamentado. Não obstante, em 1633, sob ameaça de excomunhão e morte pela Santa Inquisição, teve que negar formalmente as suas descobertas permanecendo suas convicções inabaladas[1]. 150 anos após a morte de Copérnico, o físico e matemático Isaac Newton (1642-1727) desenvolveu uma base cientifica, baseada em princípios fundamentais da física, para a gravitação dos planetas ao redor do Sol. Foi a comprovação definitiva do heliocentrismo. Apesar de ser comprovada de forma conclusiva, a teoria elaborada por Copérnico só viria a ser aceita pelo Vaticano em 1835, quando o papa Gregório XVI admitiu, e corrigiu, o erro dos seus antecessores. 300 anos se passaram até que a obra “Das Revoluções dos Corpos Celestes” fora retirada da lista dos livros censurados pela Santa Sé.

Este exemplo, extraído da história, está sendo utilizado por mim, não como crítica à Igreja Católica, nem aos Papas. Isso não vem ao caso nem é minha intenção. O objetivo é mostrar que, assim como esta, milhares de outras diversas situações, permeiam a humanidade, contaminando o verdadeiro saber e distorcendo a realidade dos fatos, com discursos falsos e negacionistas, que passam a ser aceitos como verdades incontestáveis.

É o discurso hipócrita, aquele que é afetado por um sentimento louvável que não se tem, que estabelece uma falsa devoção a princípios etéreos, sem sustentação sólida. Construído sobre uma coletânea de ideias e expressões recheadas de imposturas, fingimentos, simulação e falsidades. Verdadeira demonstração de virtudes ou evidências, inexistentes ou antagonistas daquelas que realmente permeiam os sentimentos.

O discurso hipócrita não é casual na sua origem. Está fundamentado na intencionalidade da ação e tem como objetivo distorcer a verdade, enganar, confundir, criar uma realidade paralela, negar a evidência dos fatos, que são substituídos por falsas e distorcidas imagens e afirmações. Esse negacionismo cria suas raízes na fertilidade propiciada pela ignorância do sujeito. Assim se sustenta, e desenvolve seus tentáculos inoculando seu veneno, subtraindo a capacidade de pensar.

Os venenos existem desde os primórdios da existência, e com muita dor e sofrimento, as pessoas aprenderam a reconhece-los e evita-los. Não são perigosos quando usados com sabedoria e bom senso. São úteis e necessários para a própria sobrevivência do ser humano. Antídotos foram descobertos e são utilizados para neutralizar seus efeitos.

O discurso hipócrita, é um poderoso veneno que possui a capacidade de subjugar as pessoas, dominar suas ações e controlar seu pensamento. Traz, na sua essência uma imensa energia subliminal, que direciona, aglutina e comanda. É mutante, adaptativo, maleável. Não existe antídoto para ele.

Há duas opções para enfrenta-lo:

A primeira consiste em despreza-lo em favor da verdade, abrindo os olhos a realidade objetiva, rejeitando radicalmente suas propostas e afirmações, arrancar suas raízes e destruir seus frutos e sementes.

A segunda é aceita-lo, e penetrar de mãos dadas na tenebrosa caverna do obscurantismo, dentro da qual dificilmente encontraremos, o caminho de retorno, correndo o risco de permanecer na penumbra para sempre.

Você pode concordar ou não, porém essa é minha opinião, aqui, somente entre nós.



[1] e pur si muove” é uma locução italiana que significa: “e, contudo, ela move-se!" Esta frase foi pronunciada por Galileu depois de haver sido obrigado pelo Santo Ofício a abjurar da pretendida heresia de que a Terra gira no espaço sobre ele mesma, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008 - 2020  https://dicionario.priberam.org/e%20pur%20si%20muove [consultado em 24-12-2020].

 

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

As fantasias e a realidade

As fantasias permeiam nossas vidas, habitam em nós e determinam nossas atitudes. Não podemos nos isolar delas. São omnipresentes. Não é possível separar o mundo das fantasias do mundo concreto, objetivo. Interferem e deformam nossa percepção da realidade, numa continua e incessante procura de oferecer satisfação imediata aos nossos desejos. Parasitam e dividem nosso eu, se alimentam de nossas angustias.

Como isso é possível? Para que servem as fantasias? Como é possível que nos dominem em tal grau e intensidade? O que são essas tão poderosas e dominantes fantasias?

 

“Uma fantasia é a encenação, no psiquismo, da satisfação de um desejo imperioso que não pode ser saciado na realidade. Observemos, porém, que a fantasia pode, ao contrário, desempenhar o papel de estimulador do desejo, reavivá-lo e aumentar seu ardor. (Nasio, Juan-David, 2007, p.10)”.   

 

As fantasias influenciam continuamente nosso comportamento, sem percebermos que por elas estamos sendo controlados. Tingimos os cabelos para ocultar os fios brancos a pesar deles permanecerem brancos na sua essência. Utilizamos cremes para eliminar rugas na pele, adquirimos roupas modernas e juvenis, fazemos cirurgias plásticas, implantamos bolsas de silicone, fazemos lipos e modelagens procurando um rejuvenescimento impossível. Adquirimos aparelhos eletrônicos “Top Class”, com infinitos recursos que nunca utilizamos, para poder mostrar que estamos antenados no que há de mais moderno e que estamos surfando na onda mais atual. Utilizamos uma gravata “listrada” porque nos dá um ar mais descontraído e juvenil, adquirimos um carro esportivo e poderoso para impactar o nosso grupo social, enfim, construímos um “eu” paralelo, imaginário, fruto dos devaneios e comandos emanados de nossas fantasias. Não aceitamos o passar do tempo. Não reconhecemos a vida como ela é.

Não nos aceitamos como realmente somos. Não sentimos orgulho de “ser”. Somos impelidos pelas nossas fantasias a “parecer”, a sermos eternamente jovens, bonitos, fortes e poderosos, superiores.

Neste ponto, me permito relatar uma situação que marcou minha vida:

 

Um cabelereiro, que me atendeu durante mais de 20 anos, me perguntou:

- Seu cabelo é totalmente branco, porque não utiliza o produto “X” como xampu, vai escurecer o cabelo progressivamente e lhe dar um aspecto juvenil?

Minha resposta foi imediata:

- Deixe meu cabelo naturalmente branco, como ele é. Demorou 60 anos para ficar assim. Me permita respeita-lo na sua idade.

 

Não estou questionando a elegância, o perfume, o cosmético ou a forma de vestir. Pelo contrário, sou totalmente a favor de cuidar de nossa aparência, de nosso modo de vida, da alegria de viver. De ficar “bonitos” para nós e para àqueles que amamos.

Meu questionamento centra-se na perda total da identidade, como fruto do domínio absoluto de nossas vidas, pelas fantasias.

As marcas do tempo, devem servir como sinais de maturidade, experiencia e sabedoria. Somos o que somos, jamais o que parecemos.

As fantasias devem, sim, ocupar um espaço em nossas vidas, pois alimentam os sonhos e estimulam nossas caminhadas. Podem compartilhar nosso mundo. São benvindas.

O que não podemos é viver no mundo da fantasia. Jamais devem nos dominar e controlar nossos pensamentos, sob o risco de sermos transformados em marionetes, sem vida própria.

 

Você pode concordar ou não, porém essa é minha opinião, aqui, somente entre nós.

 

Bibliografia:

 

NASIO, Juan-David. A fantasia. O prazer de ler Lacan. [Tradução, André Telles e Vera Ribeiro] – Rio de Janeiro, Zahar,2007,