domingo, 29 de novembro de 2020

Via "di porre" e via "di levare"

 Todos nós, como seres humanos, desde a concepção até o último alento, passamos por um processo contínuo de adequação e mudanças, sejam elas orgânicas, psíquicas ou sociais. Vivemos numa permanente construção e aperfeiçoamento do ser, com um objetivo primordial: sobreviver o quanto e o melhor que for possível.

Sigmund Freud, no seu trabalho “Sobre a psicoterapia” (1905)[1] faz referência a duas expressões utilizadas por Leonardo da Vinci, ao referir-se às belas artes: “A pintura opera por via di porre, pois aplica uma substância, a tinta (formada por partículas de cor) onde nada existia antes, na tela incolor. A escultura, contudo, processa-se por via de levare, visto que retira do bloco de pedra tudo o que oculta a superfície da estatua nele contida.”

Pedindo licença e desculpas a estas duas imensas personalidades da humanidade, utilizarei essas expressões para falar sobre a construção e aperfeiçoamento do ser humano, mencionada anteriormente.

De forma análoga a uma pintura de alta complexidade artística, o homem desenvolve sua estrutura bio-psico-social por via de porre através do agregado de sucessivas camadas de conhecimentos, experiências e relacionamentos que, a cada instante, são incorporadas como resultante do processo de aprendizado contínuo ao qual estamos permanentemente submetidos. Tintas e cores aplicados ao longo da vida por múltiplos e diferentes artistas: pais, mestres, parentes, amigos, esposos, filhos, netos, enfim, todos e cada um daqueles que em algum momento interagem ou se cruzam em nosso caminho.

Essa obra fica, a cada dia, mais perto do seu acabamento final, que coincide com o momento de nossa despedida.

Porém, como seres humanos, jamais estaremos completos, se a estrutura bio-psico-social já mencionada, não for cinzelada cuidadosamente por via de levare. Devemos arrancar, camada após camada, e modelar, a pedra que nos sufoca, que nos aprisiona dentro de um bloco rígido, que nos paralisa. Martelo e cinzel devem retirar de nossa alma o ódio. Quebrar o bloco do rancor. Somos imobilizados pelo medo, e dele devemos nos livrar. O amargo nos envenena. O silêncio nos afasta. São camadas e mais camadas que conformam a pedra no seu estado mais bruto. Não há, nela, brilho, suavidade, forma. Tudo é áspero e agudo.

Somente depois de retiradas essas camadas grosseiras, poderemos descobrir a figura suave, brilhante e formosa, escondida no bloco sólido de nossa alma.

O ser humano deve ser ininterruptamente construído, passo a passo, por via de porre e por via de levare. Utilizando a suavidade do pincel que colore e dá vida a nosso ser, e a força do cinzel e martelo, que retira de nós a rigidez da pedra que sufoca nossos sentimentos e nossa alma.

Você pode concordar ou não, porém essa é minha opinião, aqui, somente entre nós.



[1] Freud, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud; edição standard brasileira. Volume VII. Apêndice: Sobre a Psicoterapia. (p. 247). Rio de Janeiro. Imago, 1996.

Um comentário:

Unknown disse...

Que possamos ir nos construindo continuamente.